A MORTE DO AUTOR
Na sua novela Sarrasine, Balzac, falando de um castrado disfarçado de mulher, escreve esta frase: «Era a mulher, com os seus medos súbitos, os seus caprichos sem razão, as suas perturbações instintivas, as suas audácias sem causa, as suas bravatas e a sua deliciosa delicadeza de sentimentos». Quem fala assim? Será o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? Será o indivíduo Balzac, provido pela sua experiência pessoal de uma filosofia da mulher? Será o autor Balzac, professando ideias «literárias» sobre a feminilidade? Será a sabedoria universal? A psicologia romântica? Será para sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse obliquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve.
Sem dúvida que foi sempre assim: desde o momento em que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa. Todavia, o sentimento deste fenômeno tem sido variável; nas sociedades etnográficas não há nunca uma pessoa encarregada da narrativa, mas um mediador, châmane ou recitador, de que podemos em rigor admirar a prestação (quer dizer, o domínio do código narrativo), mas nunca o «gênio». O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais nobremente, da «pessoa humana». É pois lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à «pessoa» do autor. O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário íntimo, a sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; a crítica consiste ainda, a maior parte das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire, que a de Van Gogh é a sua loucura, a de Tchaikowski o seu vício: a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua «confidência».
Apesar de o império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crítica não fez muitas vezes senão consolidá-lo), é evidente que certos escritores já há muito tempo que tentaram abalá-lo. Em França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de pôr a própria linguagem no lugar daquele que até então se supunha ser o seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia - impossível de alguma vez ser confundida com a objetividade castradora do romancista realista - atingir aquele ponto em que só a linguagem atua, «performa», e não «eu»: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (o que é, como veremos, restituir o seu lugar ao leitor). Valéry, muito envolvido numa psicologia do Eu, edulcorou muito a teoria mallarmeana, mas, reportando-se por gosto do classicismo às lições da retórica, não cessou de pôr em dúvida e em irrisão o Autor, acentuou a natureza lingüística e como que «arriscada» da sua atividade e reivindicou sempre, ao longo dos seus livros em prosa, em favor da condição essencialmente verbal da literatura, perante a qual qualquer recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição. O próprio Proust, a despeito do caráter aparentemente psicológico daquilo a que chamam as suas análises, atribuiu-se visivelmente a tarefa de confundir inexoravelmente, por uma subtilização extrema, a relação entre o escritor e as suas personagens: ao fazer do narrador, não aquele que viu ou sentiu, nem sequer aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (o jovem do romance - mas, afinal, que idade tem ele, e quem é ele? quer escrever, mas não pode, e o romance termina quando finalmente a escrita se torna possível), Proust deu à escrita moderna a sua epopéia: por uma inversão radical, em lugar de pôr a sua vida no seu romance, como se diz freqüentemente, fez da sua própria vida uma obra, da qual o seu livro foi como que o modelo, de modo que nos fosse bem evidente que não é Charlus que imita Montesquieu, mas que Montesquieu, na sua realidade anedótica, histórica, não é senão um fragmento secundário, derivado, de Charlus.
O Surrealismo, enfim, para ficarmos por esta pré-história da modernidade, não podia atribuir à linguagem um lugar soberano, na medida que a linguagem é sistema, uma subversão direta dos códigos, aliás, ilusória, porque um código não se pode destruir, apenas podemos «jogá-lo»; mas, ao recomendar sem cessar a ilusão brusca dos sentidos esperados (era o famoso «safanão» surrealista), ao confiar à mão a preocupação de escrever tão depressa quanto possível o que a própria cabeça ignora (era a escrita automática), ao aceitar o princípio e a experiência de uma escrita a vários, o Surrealismo contribuiu para dessacralizar a imagem do Autor. Enfim, de fora da própria literatura (a bem dizer, estas distinções tornam-se obsoletas), a lingüística acaba de fornecer à destruição do Autor um instrumento analítico precioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem precisar ser preenchido pela pessoa dos interlocutores; linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal como eu não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um «sujeito», não uma «pessoa», e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer «suportar» a linguagem, quer dizer, para a esgotar.
O afastamento do Autor (com Brecht, poderíamos falar aqui de um verdadeiro «distanciamento», diminuindo o Autor como uma figurinha lá ao fundo da cena literária) não é apenas um fato histórico ou um ato de escrita: ele transforma de ponta a ponta o texto moderno (ou o que é a mesma coisa - o texto é a partir de agora feito e lido de tal sorte que nele, a todos os seus níveis, o autor se ausenta). O tempo, em primeiro lugar, já não é o mesmo.