Roma a Lenda
Na Eneida de Virgílio e na Ab Urbe condita libri de Tito Lívio, Eneias, filho da deusa Vênus, foge de Troia com seu pai Anquises, seu filho Ascânio e os sobreviventes da cidade. Durante suas peregrinações, eles finalmente chegam ao Lácio, na península Itálica. Lá, Eneias é recebido pelo rei local, Latino, que oferece a mão de sua filha, Lavínia. Isso provoca a fúria do rei dos rútulos, Turno, um poderoso monarca itálico que havia se interessado por ela. Uma terrível guerra entre as populações da península eclode e, como resultado, Turno é morto. Eneias, agora casado, funda a cidade de Lavínio em homenagem à sua esposa. Seu filho Ascânio governa a cidade por trinta anos até que resolve se mudar e fundar sua própria cidade, Alba Longa.
Cerca de 400 anos depois, o filho e legítimo herdeiro do décimo segundo rei de Alba Longa, Numitor, é deposto por um estratagema de seu irmão Amúlio. Para garantir o trono, Amúlio assassina os descendentes varões de Numitor e obriga sua sobrinha Reia Sílvia a tornar-se vestal (sacerdotisa virgem, consagrada à deusa Vesta); no entanto, esta engravida do deus Marte e, dessa união, são gerados os irmãos Rômulo e Remo (nascidos em março de 771 a.C.). Como punição, Amúlio prende Reia em um calabouço e manda jogar seus filhos no rio Tibre. Por milagre, o cesto onde estavam as crianças acaba atolando-se em uma das margens do rio, no sopé do monte Palatino, onde são encontrados por uma loba que os amamenta; perto das crianças estava um pica-pau, ave sagrada para os latinos e para o deus Marte, que os protege. Tempos depois, um pastor de ovelhas chamado Fáustulo encontra os meninos próximo à Figueira Ruminal (Ficus Ruminalis), na entrada de uma caverna chamada Lupercal. Ele os recolhe e leva para sua casa, onde são criados por sua mulher, Aca Larência.
Rômulo e Remo crescem junto aos pastores da região, praticando caça, corrida e exercícios físicos; saqueavam as caravanas que passavam pela região à procura de espólio. Em um dos assaltos, Remo é capturado e levado para Alba Longa. Fáustulo, então, revela a Rômulo a história de sua origem. Este parte para a cidade de seus antepassados, liberta seu irmão, mata Amúlio, devolve Numitor ao trono e dá à sua mãe todas as honrarias que lhe eram devidas. Ao perceber que não teriam futuro na cidade, os gêmeos decidem partir, junto com todos os indesejáveis, para então fundar uma nova cidade no local onde foram abandonados. Rômulo queria chamá-la Roma e edificá-la no Palatino, enquanto Remo desejava nomeá-la Remora e fundá-la sobre o Aventino. Para decidir, foi estabelecido que se deveria indicar, através dos auspícios, quem seria escolhido para dar o nome à nova cidade e reinar depois da fundação. Isso gerou divergência entre os espectadores e uma acirrada discussão entre os irmãos, que terminou com a morte de Remo. Uma versão alternativa afirma que, para surpreender o irmão, Remo teria escalado o recém-construído pomério quadrangular da cidade e, tomado em fúria, Rômulo o teria assassinado.
Com relação à fundação de Roma, muitas tradições foram estabelecidas para retratar o surgimento da cidade, algumas advindas de modificações do mito oficial, outras de diversas origens. Uma delas conta que o deus Saturno, após ser derrotado pelos deuses olímpicos, refugiou-se no Lácio, onde construiu uma vila à beira do Tibre, no local onde Roma seria fundada; ensinou aos habitantes locais como melhor lavrar o solo e cultivar parreiras para produzir vinho. A palavra "Lácio", segundo alguns autores como Philip Wilkinson, originou-se da palavra grega latio, que significa refúgio, em referência à fuga de Saturno.
Outra tradição, transmitida por autores clássicos como Estrabão e Tito Lívio, afirma que Roma teria se originado da cidade de Palanteu, fundada por Evandro no Palatino; esta cidade é mencionada na Eneida de Virgílio. Evandro teria dado hospitalidade a Hércules quando este fugia com o rebanho recém-roubado do gigante Gerião, em um de seus doze trabalhos. Diz-se que, durante sua estadia, os rebanhos foram roubados pelo gigante Caco, filho de Vulcano. Hércules então luta com o gigante e, em sua homenagem, os habitantes locais construíram o Grande Altar de Hércules, local onde futuramente se situaria o Fórum Boário.
Historiografia
Já no século V a.C., autores gregos como Helânico de Mitilene associaram a fundação de Roma ao herói Eneias. Por volta de 200 a.C., Quinto Fábio Pictor criou a primeira história de Roma, associando a criação da cidade a Rômulo, tendo sua versão dos fatos sido aprimorada por outros autores romanos como Tito Lívio, Ovídio, Virgílio, Plutarco e Dionísio de Halicarnasso. Tais autores tentaram encontrar explicações racionais para passagens improváveis do mito de criação da cidade, como por exemplo a loba capitolina. Os romanos designavam pela mesma palavra, lupa, a fêmea do lobo e a prostituta. Dessa forma, historiadores afirmam que, na realidade, a ama dos gêmeos teria sido Aca Larência, mulher de Fáustulo, que teria exercido o ofício de prostituta.
O historiador Dominique Briquel afirma que muitos elementos encontrados no mito de fundação são resquícios de rituais etruscos que foram incorporados pelos romanos. Tim Cornell reforça essa ideia, afirmando que a explicação racional para a correlação entre a cidade e o herói troiano Eneias seria resquício do contato entre a Itália primitiva e os micênicos. A importância de Lavínio e Alba Longa no mito criador de Roma reflete o importante papel religioso que esses centros desempenhavam na região. Além disso, alguns dos mais proeminentes achados arqueológicos do período foram encontrados precisamente em Lavínio e nas colinas Albanas, havendo hoje a teoria de que Roma fosse contemporânea a esses centros, tendo ela sido uma colônia de Alba Longa.
Na história de Rômulo, o rapto das sabinas e a diarquia de Rômulo e Tito Tácio (governante sabino) são eventos que, segundo autores como Tim Cornell, devem ter elementos verossímeis e igualmente podem ser entendidos como indicativos da influência sabina na Roma primitiva. Muitos elementos sabinos são detectáveis, por exemplo, palavras de origem sabina: bos (boi), scrofa (porca), popina (cozinha). Além disso, a diarquia de Rômulo e Tito Tácio é possivelmente uma indicação de que Roma surgiu através da fusão de duas comunidades, uma no Palatino e outra no Quirinal, ou ao menos da incorporação da segunda à primeira. Outro ponto forte desta interpretação está em uma citação de Tito Lívio, I.13.4, onde se refere a Roma como geminata urbs ("a cidade dupla"), bem como na raiz da palavra quirites (singular: quires), o gentílico dos cidadãos romanos, que segundo autores romanos deriva de Cures, a capital dos sabinos; autores modernos questionam esta associação.