OS TRÊS JULGAMENTOS DE SÓCRATES. E UMA SENTENÇA EXEMPLAR (parte 1).
Desde que o sorteio determinou que, ao contrário da vontade justiceira de quase todos — incluindo do juiz Carlos Alexandre —, a instrução do Processo Marquês caberia a Ivo Rosa, desencadeou-se sobre este juiz a mais feroz campanha de desacreditação pessoal a que já assisti. E não apenas nos media que servem de caixa de ressonância ao DCIAP e ao Ministério Público (MP), mas nos próprios meios judiciais, com destaque para o Tribunal da Relação de Lisboa — o mais desprestigiado e manchado dos tribunais portugueses —, onde desembargadores, muito aquém tecnicamente de Ivo Rosa, se deleitaram em contrariar decisões instrumentais dele, fazendo-o, por vezes, em termos de deliberada e pública humilhação.
O ambiente estava, pois, preparado para que, ocorrendo qualquer outra decisão instrutória de Ivo Rosa que não aquela que o MP, os justiceiros dos media e a opinião pública há muito tinham estabelecido como a única aceitável, Ivo Rosa fosse levado ao cadafalso e erigido até em coveiro não só da justiça mas do próprio regime democrático. Não espanta que o faça a turbamulta dos abaixo-assinantes que acham que se pode sanear um juiz por petição popular, como nas ditaduras, ou os sectores da direita e extrema-direita que usam a corrupção como pretexto propagandístico e a incapacidade da justiça de ser eficaz e pronta como sinal da inviabilidade do sistema democrático. É uma agenda política que só os idiotas e os ingénuos não enxergam. O que me espanta é que gente que tinha obrigação de se guiar por outros padrões, menos imediatistas e menos histéricos, até mesmo gente com formação jurídica não tenha resistido também a cavalgar a onda populista em lugar de se dar ao trabalho de estudar com atenção o quadro jurídico em que se movimentou o juiz. Por todos, cito Marques Mendes e a sua frase de uma extrema gravidade: “Este juiz é um perigo à solta.”
Ora, este juiz produziu uma “sentença” exemplar. Mas, para melhor a compreender, é preciso notar que José Sócrates, de facto, estava e está a ser julgado em três planos diferentes, mas que, por via das funções que exerceu e no período em que as exerceu, se confundem no Processo Marquês: um julgamento político, um julgamento criminal e um julgamento ético.
No julgamento político (de que Ivo Rosa não se ocupou, nem se podia ocupar, no seu despacho instrutório), Sócrates era acusado de ter levado o país à ruína [por força de condicionalismos externos da crise internacional do "subprime"], e só por isso muitos gostavam de o ver na prisão. Sócrates contribuiu para levar o país à ruína, mas entendo que é uma desculpa de má consciência colectiva sustentar que o fez sozinho, que foi a sua governação sozinha que acrescentou 60 ou 70 mil milhões à dívida do Estado. Aliás, quando o FMI é chamado por Sócrates, em 2011, não era apenas o Estado que estava falido, mas o país inteiro: famílias, empresas, bancos, tudo estava endividado por anos sucessivos em que, por muito que isso custe ouvir, de facto todos tinham vivido acima das suas possibilidades.
Quanto ao endividamento público, o facto é que Sócrates, o despesista, foi reconduzido em eleições pelo mesmo povo que agora o acusa de ter arruinado o país, e, nessa altura, houve uma única voz que, em vão, chamou a atenção para o que se estava a passar: Manuela Ferreira Leite — que, sintomaticamente, perdeu as eleições e perdeu o PSD. E recordo que, quando, em 2009, Teixeira dos Santos, alarmado com o crescimento do défice e da dívida, quis puxar o travão, vieram “instruções superiores” de Bruxelas para fazer exactamente o contrário — o que conduziria ao colapso das finanças públicas de Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda e Itália. E enfim, para quem já não se lembre, houve o célebre PEC IV, quando a nova orientação de Bruxelas passou a ser a inversa. Lembram-se o que era, na sua essência, o PEC IV, que Bruxelas já tinha aprovado? Era um plano justamente para tentar conter o caminho para o abismo, cortando na despesa pública, subindo alguns impostos e tentando assim evitar a chamada da troika. Votaram contra o CDS e o PSD, porque, chumbado o plano, caía o Governo e lhes cheirava a poder; e votaram contra o PCP e o BE, mesmo sabendo que estavam a abrir caminho à direita e à troika. A versão de Sócrates culpado único da ruína do país tem mais de catarse geral do que de verdade histórica.
