Macunaíma
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter é um livro publicado em 1928 pelo polímata brasileiro Mário de Andrade, considerado a sua obra-prima. Escrito em pouco tempo mas fruto de pesquisas anteriores que o autor fazia sobre as origens e as especificidades da cultura e do povo brasileiro, narra a história do herói índio Macunaíma desde seu nascimento na selva até sua morte e transfiguração. A trajetória do herói é movimentada e aventureira, com a ajuda de seus irmãos e outros personagens, em busca de uma pedra mágica, o muiraquitã, que havia recebido de seu grande amor, Ci, a Mãe do Mato, mas que fora perdida e acabara em posse de Piaimã, um gigante comedor de gente que vivia como abastado burguês em São Paulo.
A obra é de difícil classificação no sistema dos gêneros literários; sua estrutura combina elementos de muitos gêneros. É amplamente elogiada como um experimento linguístico e literário extraordinariamente original e bem-sucedido, que esconde sua erudição na aparente facilidade com que integra modos de falar e elementos de crônicas, lendas, ditados e contos folclóricos de todo o Brasil em uma narrativa coerente, vigorosa, ágil e cativante. Também é admirada como uma penetrante reflexão sobre a cultura e sociedade brasileira, sua história, seu presente e seu destino. O mítico e o mágico fluem livremente ao lado da realidade concreta e muitas vezes a transfiguram, impregnando-a de novos significados. O protagonista é um personagem complexo e imprevisível, alternando entre momentos de aguda perspicácia e estupidez, entre mansidão e brutalidade, entre grandeza e vilania. É um ser sobre-humano, dotado de poderes mágicos, e vive operando prodígios. Seu caráter e moralidade fora dos padrões, assim como sua sexualidade exuberante e irrefreada, têm sido objeto de intensa exploração crítica e debate.
O livro é amplamente conhecido no Brasil, e seu protagonista saiu das páginas para viver no imaginário coletivo da nação, tornando-se um ícone popular. Na mídia e na cultura popular, formou-se uma persistente imagem de Macunaíma como um retrato do "brasileiro médio" e seu modo de viver e entender o mundo, geralmente enfatizando traços negativos de preguiça, inconstância, libertinagem, covardia e pouca confiabilidade. No entanto, para a maioria dos críticos recentes, essa visão é um estereótipo pouco fiel à realidade. A carreira do herói acaba em uma grande derrota: ele perde tudo ao que dava valor, seus amores, sua família, seu império, e toda sua tribo se extingue. No final, solitário e desiludido, deixa o mundo e vai para o céu, transformando-se numa constelação. Reivindicando a diversidade e miscigenação que marcaram a formação do país, normalizando o imprevisto, e incorporando a liberdade, a imaginação, a poesia e o maravilhoso ao cotidiano, ele é muitas vezes entendido pelos pesquisadores como um "anti-herói", um símbolo da resistência ao colonialismo, à massificação, à homogeneização e à higienização étnica e cultural, aos preconceitos e discursos hegemônicos. É um contraponto ao racionalismo frio e desumanizante, ao mundo das convenções, das regras fixas, dos horários rígidos e dos valores supostamente eternos e universais. A mensagem da obra permanece viva e pertinente para o presente. A controvérsia cercou a obra desde seu lançamento em 1928, surgindo em um momento em que os intelectuais modernistas procuravam descobrir e redesenhar a "verdadeira" identidade nacional, trabalhando em um contexto conservador e enfrentando a herança ainda muito viva do passado monárquico e colonial.
A volumosa bibliografia crítica que Macunaíma produziu é repleta de controvérsias sobre seu significado, aspectos estéticos e implicações morais, culturais, políticas, históricas e sociais. No entanto, é consensualmente reconhecida como uma obra-prima e uma das duas maiores marcas do Modernismo Literário Brasileiro, se não a maior. Este trabalho também foi estudado por pesquisadores estrangeiros e traduzido para vários idiomas, tornando-se uma série de obras canônicas da literatura brasileira, adaptada para o cinema e o teatro, e servindo como referência frequente em diversos domínios artísticos e culturais.
Contexto e influências
Macunaíma é geralmente considerado um fruto paradigmático do Modernismo brasileiro, movimento que buscou romper com a tradição e definir um período de questionamento e busca por formas de pensamento e expressão mais adequadas a uma conjuntura que rapidamente se transformava sob o impacto das mudanças sociais, progresso científico e tecnológico, industrialização, urbanização e novas formas de entender a sociedade. Correntes filosóficas e políticas como o anarquismo e o marxismo influenciaram este contexto. O Modernismo também foi impactado por tendências estrangeiras, como futurismo, cubismo, dadaísmo, expressionismo e surrealismo, que introduziram a abstração e a liberdade irracional e expressiva. Entre os pioneiros das novas tendências no Brasil estavam Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia, Graça Aranha, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Anita Malfatti e Victor Brecheret. Em 1922, a Semana de Arte Moderna, organizada por muitos desses pioneiros, marcou o início do movimento, mas muitas experiências já haviam sido feitas anteriormente. O Modernismo costuma ser dividido em três fases, com a primeira, denominada "heróica", sendo a mais radical e iconoclasta. A influência das correntes estrangeiras foi fundamental neste período, com a proposta de abandonar tradições desgastadas e adotar valores especificamente nacionais, sobretudo populares, negros e indígenas, historicamente marginalizados. O movimento propôs uma revisão crítica da história, do colonialismo e do processo civilizatório, com ênfase no multiculturalismo, na atualização e na liberdade de pensamento e expressão. Ao mesmo tempo, procurou superar o "complexo colonizado" e o país dependente de referências estrangeiras. Na literatura, buscou ir além da preciosidade e do estilo erudito e artificialista, absorvendo elementos coloquiais, gírias, folclore e regionalismos, desenvolvendo formas fragmentadas e irregulares. Em uma carta a Alberto de Oliveira de 1924, Mário de Andrade escreveu:
“Estamos regredindo contra ou o preconceito dá forma. Estamos matando a literatice. Estamos terminando como domínio do francês sobre nós. Estamos terminando como domínio gramatical de Portugal. Verdade que enriquecerá como seu contingente característico uma imagem multifacetada da humanidade. [...] Estamos fazendo arte muito mesclada com a vida.”
